segunda-feira, 17 de março de 2008

A Realidade nua de Uma Vida


Maria era filha única de uma família formada pela sua mãe, Justina Gonçalves e, pelo seu pai, Carlos Gonçalves. Muito tradicional, onde a educação era a pedra basilar na família, onde reinava muito amor, junto com muita obediência e respeito; a moral acima de tudo e os bons costumes. Maria cresceu linda, alta, esbelta, encantadora, de cabelos negros compridos, os mais apreciados por todos na comunidade, especialmente pelo seu pai. Um exemplo de educação, devoção, afecção pelos pais e familiares, inteligência e astúcia. Por ser a única filha era muito estimada, mas igualmente muito controlada pelos seus progenitores, protegendo-a do mal da sociedade, da leviandade, desejando que a formação da sua personalidade fosse a mais perfeita possível. E com esforço conseguiram dominar impulsos naturais de uma criança em formação e fez-se uma senhora de mil encantos, de mil qualidades: humanidade, emotividade, sinceridade, brandura de espírito, humildade, simpatia, simplicidade. Uma doçura para seus pais e um exemplo a seguir pelos demais. Sua acalmia, sua postura correcta, delicada, seu sorriso tímido, sua gentileza no modo de falar, sua extrema sensibilidade perante o que via, a sua fácil comoção – uma jóia de indecifrável valor!
Os pais de Maria eram bem conceituados no meio social em que se inseriam, numa pequena vila alentejana, pacata, onde reinava a harmonia entre todos, onde todos confraternizavam, onde havia sempre quem ajudasse os mais pobres e oprimidos. Tempos passados, onde embora a fome reinasse na maioria, não faltava o empenho, a ajuda, um carinho, uma atenção… e onde todos, apesar de nem sempre viverem no seu mais pleno bem-estar, sabiam reunir-se em festas e bailes, se divertir… uma pureza, uma riqueza pelos habitantes da vila repartidos.
A mãe era uma dona de casa perfeita, que valorizava as artes de uma boa esposa, ensinando à filha como bordar, como fazer renda… Queria prepará-la para se tornar uma boa dona de casa e principalmente uma boa esposa e mãe. Era um tanto exigente, conservadora, muito recatada mas amava de tal forma a filha que só podia fazer com que ela fosse o melhor possível para assim ser mais feliz. O pai, muito trabalhador, sustentava a casa com esforço e muita luta. Era um homem nobre, de tracto gentil, reconhecido, muitíssimo educado e querido por todos na sua vila e também terra natal.
Maria Gonçalves tinha um primo de segundo grau, chamado José Gonçalves, filho de um general muito regrado, muito recto na sua conduta. Maria crescia e o pai de José deliciava-se com tamanha formosura e o seu maior desejo era que ambos os primos se desposassem.
Maria, de sua cortês educação, não era seu costume sair sozinha, ir a bailes, desfrutar de convívios maiores, mas seu primo José era visita frequente em sua casa e entre ambos, naturalmente, cresceu um sentimento que ia para além dos laços sanguíneos. Olhares tímidos, vendados pelos pais, sorrisos… um encantamento genuíno cresceu e se desenvolveu, grandiosa e estrondosamente!
Sempre se casaram, para alegria do tio general, pai de José e da família de Maria que não conhecia par melhor para a sua tão amada filha. Foi uma cerimónia modesta, simples, ao gosto de ambos e ao jeito de ambos, serenos e muito humildes. O amor principiante que os uniu, após o matrimónio, não desfaleceu nem um pouco… houve apenas um crescer, um acrescentar, cada dia de mais amor, de mais carinho, de mais afecto, de mais proximidade, de mais dependência mútua. José abeirava-se de Maria, com seu olhar brilhante e apaixonado e dizia-lhe terna e francamente: ”És o meu ideal, Maria. Gosto tanto tanto de ti, és perfeita. Nunca pensei encontrar o meu ideal! És única, a mais linda de todas as mulheres, tens tudo o que eu mais aprecio. Gosto tanto de ti, Maria!”. Beijando-se como se fosse a primeira vez, todas as manhãs de seu casamento. José adorava tê-la bem junto dele e enciumava quando ela fazia convívio com amigas fora do lar. Bastava ela se atrasar, quando chegava a casa cansado, e perguntava logo por ela, sua primeira e única lembrança “Onde é que está a minha Maria?”. De cedências, paciência, muita flexibilidade e amor, nunca o casal discutira ou passara dias sem se falarem… nunca! Havia um profundo respeito mútuo, um amor que não podia ser maior que os unia, mais e mais com o passar do tempo. Três rebentos desta união, três frutos acarinhados, amados, educados com sacrifício, com tamanha preocupação e zelo. A mais nova, Carla, o filho António e a filha mais velha, Sofia.
A mais nova, Carla Gonçalves era uma doçura, uma delicadeza sem igual, frágil, educada, tão nobre espírito, tão bom coração… um amor, uma flor em redoma guardado. Estudou, formou-se, leccionou, casou-se e teve uma filha. Mais perfeição que a mãe só mesmo a filha Julieta. Que ninguém neste mundo diga que não existem anjos na Terra, porque ela era a prova disso. Celestial… Seus cabelos loiros, quase dourados, seus olhos azuis da cor do mar, do Céu (seu Paraíso), seu rosto perfeitinho, tão singelo, tão naturalmente belo, já para não se falar do seu coração de diamante, sua bondade sem igual, a sua falta de malícia, a sua pureza, a sua entrega generosa a todos, o seu difícil ressentir. Alma pura e perfeita! Dizem que só Deus tem os que mais ama e assim se cumpriram seus desígnios. Terminada a formatura como farmacêutica, com uma Farmácia cuidadosamente construída pela mãe, como todos os anjos brilhou por tempo limitado… apenas deixam sua passagem, seus ensinamentos perante a vida e regressam ao céu estrelado, velando lá de cima por todos. Um linfoma a dilacerou, pobrezinha. A mãe, Carla nunca mais foi a mesma. Divorciada de um marido frio e impassível, sem a filha, sem família por perto… totalmente sozinha, apenas com seu gato, fiel companheiro, se entregou a uma morte prematura, a um luto patológico, a uma depressão que se arrastou anos a fio. Sem a filha, seu anjo e companhia, nada na vida lhe fazia sentido. Maria vivia triste, tentando consolá-la, fazê-la reagir, embora longe… Não reagiu… contou com a ajuda de pessoas bondosas com quem falava, pois que um psicólogo ou psiquiatra “nunca me irão trazer de volta a minha filhinha Julieta”. Mas anos passava, coberta no seu leito, sem luz do dia, sem se alimentar regularmente, pedido só a morte para junto ficar, lá no alto com sua filha, o seu mundo! Com a persistência da sua mãe, sempre esperançosa, sempre atenta á filha, um dia conseguiu sair da casa e viajar pelo mundo em excursões, convivendo com outras pessoas. Foi tão súbito que nem dava para acreditar, mas cedo voltavam as recaídas, de novo uma nova vontade e assim se passou até que, quando se decidira a reerguer-se, o que mais desejou, estar junto da sua filha, se concretizou. O terror do cancro, que já a tinha ameaçado há tempos atrás, voltara para a levar embora deste mundo frio, duro, triste, desvirtuado, para um outro mais belo e cintilante, onde a paz existe e a dor não tem mais lugar. Descansou de um vazio sem fim, mas Maria, sua mãe, como iria suportar a dor? Agora sem sua filha, a mais nova, o mimo de todos, inclusive dos irmãos? Como Deus a tirou de si? Que desígnios o subjaz? Tristeza que só mãe sabe, só mãe sente… os outros apenas poderão olhar, presenciar, imaginar…
O segundo filho de Maria, António Gonçalves, sempre fora a criança mais apreciada pela sua beleza em criança. Certo dia até propuseram à sua mãe quanto queria por ela, para a ter, pois nunca vira nada igual, semblante mais bonito num menino. A mãe, sorrindo, disse: ”Não há no mundo nada que pague este tesouro. É meu!”, dizia com vaidade. Muito astuto, inteligente, conhecedor do bom que a vida pode dar, selector finíssimo de amizades mais requintadas, mais distintas, se fez homem corajoso, de bom porte, de boa alma. Casou, teve um filho, divorciou… Perguntava-se porque seria que seus pais se amaram até à morte e ele estava a passar por tamanha aprovação de desamor, tal como a irmã mais nova? Porque se inverteram os destinos? Lutador, sofreu o mesmo terror da irmã Carla, cancro, mas conseguir reverter os factos a seu favor e, para além disso, ser o irmão que perdera a irmã e o filho que viu a mãe esmorecer de tantas lágrimas, de tanto desgosto. Um exemplo de vida, que soube voltar a amar, após tormenta e que soube apreciar os requintes mais simples e menos notórios da vida.
Sua filha mais velha, Sofia, tão sapiente… a maior bondade do mundo, como a mãe Maria sempre dizia. O gosto de ajudar o pobre, a perfeição em suas mãos criar tamanhas pinturas, obras de arte de valor inestimável, a sua atenção para com todos da família, o Amor, a dedicação constante, o ombro afável de todos, a voz macia aos ouvidos, um coração cheio de qualidades, recheado de carícias. Estudante exemplar, mãe formidável de dois rebentos doces, esposa impecável, amistosa, carinhosa… a mais parecida com Maria, sua tão estimada mãe. Aos seus olhos a maldade não existia e todos eram dignos de um sorriso seu, um docinho, um carinho, uma voz afável e reconfortante de consolo. Sofia tão pura… Que reinado trazias em teu peito? Essa nobreza de coração, essa valentia! Porque Deus também te quis, um outro anjo terrestre. Dilacerado cancro que a afectara tempos idos, regressara mas agora com formidável força. Em tratamentos, perante a dor, o sofrer invencível, sua voz era de incentivo à mãe que primeiro perdera a neta Julieta, depois Carla e agora se via em depressão profunda. Endurecida, calejada, dona de força maior, dizia que estava sempre bem, quando só no seu mais intimo se sabia o quanto padecia. Tão linda alma! Tão angelical sofrer! Tão silencioso padecer… e morrer. Seus filhos, toda sua família não queria acreditar. No espaço de um ano, entregaram a Alma a Deus duas filhas de Maria… que justiça divina é esta? Deixar uma mãe sozinha, com um filho apenas… Perdera o seu reflexo feminino nas filhas, perdera as suas vozes ao telefone, sempre constantes, dia após dia, perdera o ânimo, o consolo, a alegria de lutar e viver.
Maria de 92 anos, ainda tão formosa, de rosto envelhecido pela acção do tempo, seus olhos sempre tristes, um sorriso leve, esforçado, uma mãe que perdera dois dos seus rebentos, que futuro terá? Anseio pela morte inevitável e nada culpabilizante. Saberá Deus explicar-lhe o porquê de tanta miséria de emoções, de tanto desalento, de tanta desesperança e desespero! Só Ele lhe dará as respostas.
Seu marido José, falecera bem antes de presenciar tanta tragédia. Antes de sua morte (uma dor enorme para Maria, sem expressão), diziam um para o outro:
- Deixa-me ser eu a morrer primeiro. – retorquia José.
- Nem pensar! Deixares-me aqui sozinha, sem ti, não aguentarei! – debatia Maria.
- Então, quando um for embora, o outro também vai e assim ninguém ficará a sofrer um pelo outro. Dizia com comoção seu amado marido, para desagrado dos filhos que protestavam “Quem ficaria para nos zelar?”.
História de vida, em primeira pessoa, sentida e amargurada. Representa talvez uma provação divina constatar resistência maior em Maria que, padecendo de doenças várias, hospitalizações, aflições, depressões, choques… tudo aguentara, oh tão brada heroína! Enaltecida merecias ser, lembrada sempre pelos que de feliz sorte te conheceram e te amaram. És a alma que mostra aos fracos o quanto um ser humano, aparentemente frágil, é capaz de tanta bravura, de naufragar e se erguer, de sufocar e não se esquecer, de sofrer sem enlouquecer. Tão lindo ser… Maria!

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