quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Tendência Dionisíaca


Libertei-me do corpo e ganhei aquelas asas que desejei alcançar e por que sempre antecipei. Libertei-me do ser, do material, do sensorial e flutuei. Voei além de mim. Julguei morrer, por momentos. Julguei não mais aguentar. Tamanha a dimensão do supra-eu. Impensável ser suportável. Deixei-me para libertar a minha alma e fugiu do real compressor. Me desnudei e me expus ao extremo de mim. Abstrai-me e embora doesse, assim o queria sentir. Deliciar-me pela dor e pelo sufoco, pelo irracional. Os padrões socialmente convencionais renegados; não vos quero por ora! Sou apenas leve pena a esvoaçar ao rumo de todas e nenhuma corrente. Deixa-me viver e sentir isto no meu mais profundo íntimo. Deixa ver para não morrer ignorante. Deixa-me cair depois, de cara no chão, pesadamente sobre o gélido e deixar-me ficar, ensanguentada, sofrida, deixada à sorte. Não quero socorro nem tão pouco o peço. Afastem-se todos! Dai-me tempo, dai-me espaço suficiente para a minha voz se quebrar de tanto sofrimento, deixa-me amputar-me, deixa-me ficar… sozinha! A solidão que me envolva e me despedaça. Que venham as gargalhadas, os socos, os vagabundos gloriar-se da vitória do meu rastejar… quero que me vejam, quero desgraça. É esta a sensação que procuro - a libertação total, mesmo que injectada pelo sofrer. Quero cair lá bem no fundo daquele poço que me sorri e me chama. Quero antecipar uma morte que não porá termo, mas sim, me elevará além vida. Fá-los temerem-te e odiarem-te! Fá-los não suportar a tua presença! Fá-los perder os bons sentimentos. Fá-los perceberem que assim serei apenas carne… o meu ser, está lá longe, inalcançável. Não me atingirão jamais porque estou para lá de mim! E caída e suja e rastejante e corrompida, nascerá em mim novo ser… e esse de início frágil… amanhã forte… ainda mais do que aquele outro que caiu. Deixai-me no silêncio para me escutar… o corpo pode feder, mas a alma se se mantiver límpida, ainda que desviante, gritará mais alto o seu poderio. Vou-me ouvir, em sussurros, historiando o meu passado e o rumo certo que percorri sem um nada causa. Para quê? Pois quebra-te agora, no teu total, fragmenta-te, manipula-te, alberga a dor do mundo, reúne os pesares, chora tudo agora… limpa-te, renova-te nessa destruição de ti. Sente o frio da tua perda, dos ideais, das convencionalidades, das amarras, das vestes, do pó… transcende-te e quebra limites. Tudo se tornará possível já que nada mais se poderá perder… já nada tens! Em criança acabada de nascer em corpo adulto. Não te perceberão e tu queres isolar-te. Fá-los pensar que enlouqueceste e grita, afugenta-os! Momento de solidão, preciosíssimo. Só tu o podes fazer por ti. Palavras e regras são proibidas. Voa depois e perpassa nuvens, sem medos, sem o que temer. Irás retomar àquela terra donde partiste, irás pousar e abrir os olhos ofuscados. Tudo será confuso e estranho; o bem-estar terminou… voltaste e vais sorrir agora. Perceberás a grandeza daquele vazio e te custará retomar a marcha. Serás capaz, contudo! Musculatura e resistência em potencial aguardam por ti, pelo teu ânimo. Não te irás querer quebrar mais, pois já experimentaste e viveste e aprendeste. Não fujas à sorte… as quedas te reforçarão!

Glamurosa


Sentada sobre aquele cadeirão branco, largo e macio avista, defronte de si, o verde do seu jardim, povoado de flores coloridas e amores-perfeitos, gladíolos e palmeiras. Sobre as suas mãos perfumadas o apoio daquele livro que desfolha devagar, enquanto respira satisfeita o aroma a canela da vela. Sala longa e decorada de estantes de livros. Sorri ao passar-lhes o olhar e ao deliciar-se com a sua obra por fim completa após tamanho cansaço. Vem até si aquele gato pardo, espreguiçando-se nas suas pernas pequenas, mas desenhadas. De repente toca o telefone, retira os óculos com suavidade e desloca-se, aveludada. As suas tarefas de líder, que jamais adormecem, árduas e nunca incomodativas, são o brilho que a seduz para a vida. Pousa o telefone, gentilmente, na finura das suas mãos e escuta o som do seu carro. Aproxima-se e vê-lo vermelho e negro e pequeno, desejado à muito; talvez, desde sempre. De dentro vê sair um vulto masculino que a irradia por dentro. Ele aquele de quem jamais se satura, aquele que com abertura a ama, autónoma. Beija-a e sente como se o primeiro fosse. Ele também o irreal existencial que sempre suspirou para si. Entram pela casa e sentem os seus aromas mesclados com aquela madeira fresca. Nela, seus gestos são graciosos, que cultivou sem oferenda gratuita pela vida fora. Fragrâncias doces e quentes se libertam dela, como se a cobrisse uma nuvem duma tarde soalheira de Verão. Fala mastigando e adocicando aquelas palavras rudes e de todos. Tem amor na língua de onde se soltam sons breves, calmos, calados pela suavidade do seu ser. Vêem até si as jóias negras que alimentou e abraçou na sua estreia pelo palmar sonhos. Deu-lhes as necessidades satisfeitas, as carícias em défice de outrora. A vida isolada individualizada e auto-centrada não lhe faziam sentido. Daí ter crescido no ajudar todos, daí a sua felicidade provir. Desconhecia-a e, em determinado momento, julgou haver antes pessimismo no seu alcance. Não desistiu porém e, um a um, conseguiu, com luta, os desejos satisfeitos. Na grandeza não se revia, sim, na bondade. Vida desafogada se deseja de quem partilha o pão com mil outros. Entrega quer-se total e não parcelar. Era irreal adormecer sob o travesseiro sem o coração nutrir com a dádiva. Só isso a saciava! Tinha ainda planos cada vez maiores, projectos, ambições… sabia não as alcançar todas em vida mas julgava haver nelas uma continuidade imortal. Confiava nos seus e medira os seus corações generosos. Não tinha porque se preocupar. Nos seus cabelos já grisalhos, algum cansaço nela se apoderava, mas a elegância e jovialidade na voz, não. O desporto fortificava-a, o seu ioga era imprescindível, a corrida e a natação, diariamente. Sempre o desejara. No esforço se aprazia. Sua casa era visitada tanto com vistas para ela como para eles; pedidos, desabafos e clemências... a todos, suas mãos e ouvidos, estendia. Eles sentiam-se melhores após o seu afastar, pois que a presença e cheiro permaneciam. Cozinhava pelas suas mãos jantares grandiosos carregados de especiarias e convidados. Sorria em gargalhadas! Haveria melhor alegria que essa? Só o banho nocturno bem quente quando lá fora há tempestade e frio. As pétalas de rosa amaciavam a sua pele, que nem a melhor seda se equiparava. Aquele creme corporal de cacau, a maquilhagem subtil e ligeira, aquele pó de arroz cintilante, o perfume vibrante. A frescura à sua passagem, a pele do casaco, e o pequeno-almoço vegetariano. O equilíbrio e a leveza de um ser… no caminho par e passo com o seu potencial.

sábado, 14 de novembro de 2009

Empequenecimento


Ela era alta, bela e esbelta. Seus olhos trespassavam almas e balançavam corações. Tinha um andar seguro, firme. Dedos compridos, desenhava os lábios que provava e os corpos que aturdia. Se se nada naquelas águas cristalinas, tudo parece observá-la… natureza morta também! Fenómeno de contemplação, riquíssima! Tocava aquele piano que se fundia nela num romântico bailado compassado. Desenhava e falava beldades e em raridades gesticulava a sua singularidade. No entanto, voltando-se do avesso e, fechada em si, o que via era o oposto: feia, rude e vulgar. Nos seus elevamentos sociais se rebaixava com palavras de cordialidade e simpatia conformista. Sentia um peso sobre ela como se uma mão gigante e poderosa a empurra-se para baixo e a sua altura não mais se notasse quando se sentia rastejar. Era cortês e amistosa, culpabilizava-se a sua insinceridade. Via-se teatralizando sem nunca tomar a vida como real. Nunca era ela e apenas o seu corpo a comandava. Sofria e, no seu extremo, desligava-se dela, em transe. Enraizada na certeza de não ter ninguém que a socorre-se em aflição mesmo quando multidões a acompanhavam e a olhavam e lhe falavam, e se apaixonavam, e se enlouqueciam e a invejavam. Porque se fecha na visão geral, porque é cega aos detalhes, porque vê limites em amplos horizontes, porque se esquece do ínfimo relevante, se vê num mundo que criou, que penosamente fantasiou, que a contorce e a festeja, que a celebra e castiga. Mas aquele não é o mundo real! Porque se limita selectivamente às vivências más; todas as outras seguem um rumo de perdição. Capaz, não se expõe, não quer competir quando afinal quer, admite ser melhor quando racionaliza ser fracasso. Triunfa quando podia ser a glória! Consegue quando podia antes vencer! Foge de quem a ama e abraça quem a despreza. Teme-os e reprime-se, sendo tudo supérfluo e vago. Vive desconfortável num ventre que magoa, num coração que palpita nessa máscara pesada que usa repetidamente, dia após dia. A dor arde nela enquanto a sopra repetidamente aparentando nunca se queimar… questionada será apenas um equívoco onde ela se encontrará sempre bem. A lógica e a razão defendem-na das armas do mundo e do terror de si e do seu pensar. Falta-lhe a energia para gritar e para se permitir ofender. O que é isso? O seu controlo domina-a até a sufocar. A vida desprende-se das suas mãos e ela está afinal a observá-la como espectador atento, angustiado e assíduo.
O que falta afinal para ser quem é? Remoção daquela que a persegue, precocemente, e que magoa cá dentro. Mas ela só se desprenderá quando houver mais agrado que insucesso, mais triunfo que pesar, mais orgulho que menosprezo. Sabe não o saber ser possível destrui-la embora lute, embora tente. Há a viva esperança entre os dias de derrota e fracasso, há a surda espera de vir a concretizar-se e mostrar-se num duplo regozijo de si, ainda mais ofuscante, ainda mais aliciante, ainda mais atraente. Por ora, longe de si…

domingo, 1 de novembro de 2009

Angustia Básica


Sei que te quero quando menos te quero, e te desprezo, és para mim um nada hoje e o tudo amanhã. Hoje sinto a tua ausência, amanhã provavelmente nem me lembrarei de ti… incomodas-me por vezes, enervas-me imenso, sinto-te frio quando és amável e dócil quando és amargo. Não te distingo entre muitos e ao mesmo tempo estou a ver o teu sorrido projectado sobre mim em todo o lado. E canto-te ao ouvido “salva-me” enquanto ontem balancei um “desaparece”. Mas quem erra és tu, eu nunca! Não te aceito e condeno-te, mas é impossível para mim fazer-te mal porque não te quero perder. Sinto a tua falta, mas a tua presença não me enche. E acarinho-te com delícia no momento em que disparo em discussão. E tu nunca me entendes e eu digo entender-te infindavelmente no meu estúpido narcisismo. Narcisismo esse que oculta o meu sentimento de inferioridade, de incapacidade, de utilidade. E ainda assim me dizes tu, para tormento dos meus nervos, que te marquei para sempre. Revolta-me que me aprecies, quando nem sequer eu sei o que isso é. Não te amo, não te odeio… simplesmente não sei o que é isto que sinto, nem o que pretendo de ti, nem se me servirás na vida. Sei, com certeza, que não te desejo sofrimento e para tal deverás esquecer-me. Quero sim amar, mas não estou capaz, nem tão pouco há esforços em mim em tentar descobrir. Não te mereço mas quero-te em sonhos. Quero-te próximo para te menosprezar, para te subjugar a mim… quero ver-te implorares-me ternura… quero-te ver rastejar… mas não quero que sofras, ainda assim… serei coerente? Nada em mim obedece a esse princípio… não me sei ser, não sei o que sou, nem o que faço, nem para onde vou. Perdida me deixas-te aqui, sozinha, quando em momentos, nós próximos, te repudiava. Fazes-me falta imensa! Mas afasta-te de mim para sempre! Não me queiras, não te iludas com aquela que não sei ser. Mas ainda gostas de mim hoje? Ou sou um passado esquecido? Ai, não me esqueças jamais! Mas não me fales também! Não te aproximes, mantém-te longe e preserva teu espaço vital. Pois que te dou tanta liberdade quanto nenhuma. Te digo para seres livre ao mesmo tempo que te prendo. E tu achas-me maravilhosa pela minha falta de ciladas quando, sem te aperceberes, já te envolvi em grades. Não me queiras e até amanhã sofrerei a tua perda até te rever noutro alguém.