sábado, 17 de abril de 2010

Déspota


Sossegadamente dormia no meu quarto rosa, pairando pelo ar a inocência e a felicidade iluminada pela ilusão da criancice e tu entraste, sem bater, e sem palavra me tocaste, me acariciaste. Estávamos sós e tinhas o poder da idade e da familiaridade sobre ti. Via-te com carinho e como alguém que me dava ternura. Alegrava-me ver-te em épocas festivas. Parecias interessado no meu crescer e favorecias o meu desenvolvimento através de questões que aguniadamente, não sabia responder, mas que tu, com paciência me explicavas. Eras talvez um pai secundário que me visitava de longe a longe. Mas ali, sozinhos, quebraste a confiança que te tinha depositado e abusaste de mim. Tinha 13 primaveras contadas e não percebia aquele gesto. Temi-te porque me senti desconfortável. Beijaste-me os lábios sem a minha reacção e sem dizer palavra continuaste a tocar-me. Não consegui proferir palavra nem tão pouco capaz de me defender. A teu bel-prazer eu estava, à tua frente, frágil e à tua mercê. E usaste. Foste chamado pela tua esposa e enfim te voltaste e te retiraste do meu quarto. Suspirei de alívio e senti-me tremer. Esforcei não chorar, permaneci quieta e coloquei a capa de fingimento, já na altura, para cumprimentar a esposa sem lhe contar o sucedido… nem a ninguém contei. Tempos depois, temia-te, mas estive na tua presença por força do parentesco. Por baixo da mesa, com a toalha a cobrir, no ambiente de uma conversa informal e familiar, senti novamente a tua mão entre elas e quis gritar e chorar. Contive-me novamente. Depois da refeição chorei escondida e após lavar o rosto, ninguém notou. Por fim, novamente, já só de te ver me enojava, encontraste um momento em que estávamos novamente sós e bajulaste-me as pernas, baixinho, tocaste-as e fotografaste-as. Embora sem continuar a dizer palavra, não consegui evitar um rosto de despeito e repugnância. Quis fugir. Ninguém percebeu o porquê. Ninguém notou que logo depois me escondi num canto, procurei tapar-me e não mais consegui olhar para ninguém. Enfim em casa, chorei. Novamente não repararam. Prossegui por mais tempo. Não aguentei e contei a ela, mostrando-se não muito surpreendida pois que também tinham havido tentativas mas que, ao contrário de mim, te soube afastar. Contei depois aos pais e a resposta foi dura: “estava apenas a brincar contigo”. Embora chorasse ao dizê-lo, não houve aconchego. Não fui levada em conta e a solução foi esquecer ou tentar. Dez anos depois conhecia aquele que podia ser o outro, de idade similar, de aspecto idêntico, com formação igual e me envolvi, inconscientemente, procurando soluções. Erradamente voltei a sentir-me a criança de antes e de novo a repugnância voltou. Evitei este outro, sem me perceber e hoje tudo aclarou, como flash. Fi-lo saber, contudo, francamente.
E a ti, querido que me lês, também o és marcante por recorrer a ti na procura de respostas. Pelo nome te assemelhas a ele, pelo vício dele e não teu, pelas pequenas características que me lembram ele, singular e de sangue. Não o retratas, mas dás-me a segurança que nele não tive. Sem querer impor-te carregamentos mil, tens-me aberto portas imensas e desterrado mil outras, profundas. Daí te querer aqui, mesmo que longe, presente. Nada mais, sem um alcance de futuro, mas presente. E tens sido tudo o que desejei e a ti te devo eu dizer, e não tu: “és importante para mim, sabes disso, não sabes?”. Imensamente grata.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Miopia Psicológica


Ela chegava com sorriso fingido e glaciar nos lábios, convincente aos preguiçosos, beijava e acarinhava e depois desaparecia para um recanto do lugar, atenta aos passos que pudessem surpreendê-la. Pegava numa folha de papel e chorava letras. Não se ouviam os soluços da dor, era tudo muito bem abafado. Sentindo a aproximação de alguém, escondia-se e limpava-as. Ela, maior, não notava; cedo voltava as costas e continuava o seu labor. Ela prosseguia até derramar no papel todo seu sentir escondido que jamais revelava: mãe, pai, professores, colegas e amigos. Permanecia um anjo sorridente, sempre de bem com tudo. Assistia à violência e sentiu-a na pele; houve crueldade imensa, males passados não observados mas vividos; mãos sujas pousaram sobre o seu corpo tenro. O que mais a assombrava era o ambiente que se respirava no lar… pesado. Nada amor, sim fingimento. Confusão de papéis os pais eram os filhos, os filhos eram os pais, tudo emaranhado, tudo fundido. Filhos consolavam, filhos ouviam, filhos para isso serviam. Filhos não tinham espaço para também eles falar de si. E os erros não eram tolerados. Logo a palavra feia e rude e áspera saia por aquela boca ferida, de um homem com cicatrizes de arrombos de criança também ele pouco embalado, e feria os seus frutos. Podiam chorar que não havia consolo; podiam fugir que ninguém se apercebia. Mas os filhos-pais continuavam a ser responsáveis pelos grandes. Duas tarefas, a de cuidar e a de serem educados, consoante os dias e sortes cambaleantes vindouras. Perante confidências tamanhas e segredos escondidos, pedidos de boca fechada, ela sabia que tinha de ser mais que uma criança. Estavam a pedir-lhe mais: ser mãe que embala e repara. Mãe essa que a mãe não teve… ou que teve e não a soube olhar como filha; sim, servente. Mas a filha actual, 12 anos, que culpa teve de erros passados? Herdou fortunas imensas e pesares infinitos. Em 40 kgs carregava 70 kgs. E continuavam a carregá-la, sim, os grandes não a ouviam queixar-se porque lhe taparam os lábios com cola. Raiva agora do experimentar revelações. Já está farta de os ouvir, agora, de os cuidar. Queria ser ouvida mas em contraponto recebe acusações e indicadores erectos sobre si ditando que tudo que em ti era bom, se esvaneceu, e que o anjo desapareceu em ti. Doi ouvi-lo! O quanto custa! Exigiram dela a perfeição, ela soube consegui-lo, desdenhou a sua adolescência e nunca se opôs. Agora quebrou e está de luto pois que nunca teve o abraço que desejou, sempre invejou aos que aos olhos deles se revelava grande, sem razão e assim foi crescendo progressivamente mais pequenina, enojando-se ao espelho. Apagaram os teus sinais calados e viram tudo menos a ela. Foi secundária, pela ordem cronológica e também afectiva. Sempre houve solidão. O corpo enfim padeceu mas que causa nenhuma física se encontrava. Eram os pesares a deixar mossa. Pesares que ainda hoje estão vivazes, claros e vivos e que ela agora se prontificou a sarar. Agora é hora de colocar óculos e contornar a miopia de 25 anos. A felicidade nunca a habitou, mas agora anseia-a. Sente merece-la. Mais que tudo sente-se heróica e forte, pois só assim se percebem os alicerces em plena ruína. Custa-lhe crer a falta de amor em laços de sangue; custa-lhe crer agora a incompreensão subliminada. Mas crê ser capaz de melhorar e ser melhor para um seu fruto. Sente-se capaz de finalmente florir após tantas primaveras. Que assim seja.