domingo, 26 de abril de 2009

Portugal Insano


De gesto branco e claro, cintila pelas ruas suas asas puras, voando atento sobre aquele país que lhe fora confinado avaliar. Passeia-se sobre as cabeças de milhares de pessoas, sem que elas se apercebam da sua existência vaga e transparente. Consegue ler os pensamentos e desvendar mistérios, traições, angústias, desesperos, ânsias, vontades, desejos, soluçares tristes… sentimentos confusos e desvairados.
Conhecera aquele país algumas décadas passadas e fora surpreendido com a rápida e conturbada mudança. Vacilou, diante do mal perverso, e náuseas sentiu ver a perdição declarada, suspirando a batalha já vencida.
Reparou então em figuras grotescas e insanas, espiritualmente débeis, fracas, flutuantes, carácteres reduzidos, vagabundos perfumados e ostentosos… a sociedade a rir diante de seus pés sem que se apercebam e lutem pela melhoria de si.
Viu as crianças, espantosamente belas e talentosas confinadas às quatro paredes de um quarto sombrio, onde o sorriso dera lugar à mágoa e solidão, onde a esperança se esvanecia pelo ar viciado, onde se respirava o cativeiro pegajoso de um humano pequenino e em formação diante de um objecto quadrado, com ecrã colorido e viciante. Antes, na última visita que fizera, vira as crianças alegres, a gritar e pular naquele jardim relvado e limpo, junto com outras tantas igualmente satisfeitas e livres. Soube ler os seus pensamentos brandos, calmos, sensatos e educados. Agora estava diante de um espectáculo moribundo de um menino homem que, após exigir frenética e violentamente aquele objecto quadrado carregado de imagens ilusórias, respondera com violência extrema às meras tentativas dos pais o acalmarem e negarem seu pedido. Nunca, naquela existência de 6 anos ouvira um “ não”, pois que, segundo veio a ler nos pensamentos dos pais daquela criança, essa palavra estaria carregada de sentimentos negativos possivelmente perturbadores para o filho que, poderia reprimir e bloquear as janelas salutares de uma vida com experiências traumáticas na infância.
Apavorado, teve que sair dali pois que seus olhos reclamavam por uma lágrima para os limpar da podridão. Esvoaçou cambaleante até que se deparar com algo inédito: adolescentes de catorze anos bebendo algo de cor estranha e a rirem estupidamente, enquanto tropeçavam sobre seus pés desvairados. Vestiam-se de forma excêntrica e falavam com tom rebelde e grosseiro diante dos demais amigos e colegas de igual idade, de igual forma, de igual comportamento. Instantes depois dava-se conta do uso de agulhas estranhamente sujas a serem espetadas nos seus braços finos numa magreza desconcertante e quebrável. E pó branco a ser aspirado naquelas narinas pequenas e rubras, como seus olhos também. Um som alto de algo semelhante a música celestial, mas mais vigoroso e temível, os fazia bailar e agitar-se ronceiramente naquele chão negro e desagradável aos sentidos. Terrível!!!
Carregado de pesar, pior que o som de uma morte carpidada, sem forças, triste, perdido, teve que fugir dali. Precisava ver algo que o fizesse animar mas, ao invés disso, deparou-se com uma série de homens engravatados, bem vestidos, bem calçados, saindo à socapa de carros luxuosos, grandes, majestosos, prateados. Em grupo, num armazém vulgar, afastado da civilização citadina, maquinavam engenhos e planos de saque e conquista… Estariam eles a planear roubar? E quem? Não, meu Deus, não! Não pode ser? Os mais pobres??? Roubar o POVO? Como isto pode acontecer? Não, tem de haver remorso dentro daqueles corações ou ao menos algum peso de consciência… Não! Ouviam-se sim as gargalhadas e o dizerem “Povinho parvo!”… Não! Isto é demais… Rumarei mais além, beira mar… tem de haver algo de bom… estarei junto dos mais pobres… Que viu? Pesca clandestina? Peixes em remessas gritando, rabiscando aflitos. Outros já mortos deitados ao lixo… enormes contentores. Céus! Posso sair daqui??? Por favor… Mas sabia que as ordens que lhe tinham sido dadas eram a de cumprir até ao fim a sua avaliação, tendo já sido alertado para “o choque”; sabia que não podia regressar, que seria impedido de o fazer, até se dar conta de todas as situações características daquele país.
Então, já desanimado, continuou a voar. Estava já totalmente desesperançado… sentiu-se imundo e baixo, insignificante demais para pensar que pudesse ver alguém capaz de acreditar nele e nos seus superiores divinos. Mas, depois de muito esvoaçar e ouvir tudo menos algo referente a Ele, cabeças carregadas de trivialidades, de preocupações, de dissabores, de sedes de vingança, de ingratidão, de falsidade, de desamor, ouviu bem baixinho uma voz calma que cantava o hino divino. De onde viria aquele som desconcertante no meio do caos? Deixando-se invadir pela acalmia daquela voz leve e branda, suave a frágil, meiga e dócil, perdida em sentimentos nobres, prosseguiu de olhos fechados até se deparar com uma menina, num campo perdido, sozinha, de vestes sujas, desgastadas, carcomidas. Quem seria tão bela criatura? Era a Rosa, seu nome e forma de ser. Deitada de costas na erva daninha, cantava alegremente sobre seu peito cheio de amor enquanto acariciava com ternura extrema aquela andorinha ferida que, despreocupadamente se mantinha no seu regaço, hipnotizada pela cor daquela menina de 12 anos. Então é que ela, sentindo uma presença favorável e tranquila, lhe falou: “Obrigada. Sempre vieste. Estás aqui, sinto-o! Senta-te aqui, faz-me companhia, irradia-me com a tua luz e sente a calma!”
Aquele anjo espantado penetrou naquele olhar doce de mel e na riqueza dos seus cabelos dourados como o sol, nas ondas que dele se desenhavam e disparou dentro de si novamente a esperança de que a perdição não era total e unânime – ela existia, era real, a sua carga sentimental era de tal forma gigantesca e pura que podia fascinar todos que, dispersos de si, enrolando-se naquele olhar cedo se renovavam.

Ela então, poeticamente, cantou:

“Sei que choras e desesperas
Quando à volta chama-lume
Daqueles que tanto amaras,
Tudo em redor teu queixume.

Pobreza que de maior choras
Caminho errante que consome
Alegra-te, o bem que esperas
No mor sufoco te informe.

Ânsia glória não apoderas
Nem o mais fundo negrume
Há que viver em quimeras
Enfim conquistar o cume."

26/04/2009