domingo, 2 de março de 2008

Actuação do “Alzheimer”


Chamava-se Irís, flor da juventude, bela e graciosa. Um sorriso seu era capaz de invadir todos os corações de uma alegria desconhecida. Seus cânticos, em voz de doçura desigual, atraiam a si todas as emoções, mesmo daqueles mais imparciais. Desejava o sempre mais. Arriscava, aventurava-se na procura de um ideal, amando tanto homens, como mulheres, as plantas e até as rochas. Viver, para ela, era Amar desesperadamente o mundo e dele retirar os frutos agrestes que nutriam delicadamente sua alma limpa e atractiva. Seus cabelos se uniam ao vento e em belos balançares a ele pertenciam. Seus olhos, de um azul oceânico, lançado sobre um olhar alheio eram capazes de brotar paixões e desejos amigáveis, pelo seu jeito de ser tão singelo e ternurento, quase infantil. Vivia num mundo só seu, numa concha, num casulo, desconhecido e onde a ânsia de descobrir o que nele existia fazia a todos se aproximarem e retirar dela um pedaço de si. Esse mundo tão misterioso apenas o revelava a John, seu amigo, apaixonado e admirador. Mas até mesmo ele se perdia em seus inquestionáveis e repentinos ímpetos e reflectia se Amor por ele habitava aquele ser tão especial. Tratava-se de uma escritora e filósofa célebre, muitas vezes homenageada em jornais, revistas, na televisão… Cada livro seu era acolhido pelo público com encantamento em sucessos sucessivos. Costumava conferenciar acerca da Educação, do Amor, da Arte, da Escrita… suas eternas paixões! Suas palavras, nessas ocasiões, soltavam-se por entre seus lábios rubros em sons conjugados em beleza sem igual, palavras que nasciam do coração e voavam como andorinhas felizes pelos ares, extraindo da Natureza a sua eterna beleza e levando-a até àqueles que, de ouvidos atentos e concentrados, as engoliam com voracidade pelo prazer inédito que proporcionavam.
Vivia de amores de bem-querer ininterruptos, mas foram suas palavras ditas a John que alicerçaram o seu casamento: “Só tu sabes tudo acerca do meu mundo tão estranho e desconhecido, és por isso o meu mundo! Amo-te!”. Num beijar doce e aconchegante, John deliciava-se pela feliz ventura de ter para sempre consigo mulher tão desigual e ao mesmo tempo tão perfeita em seu olhar. John era do tipo pacato, de longe tão extrovertido, pervertido, animado e apaixonado como a Irís. Era mais sensato, homem de Amor único que sempre pronunciou ao longo da sua vida conjugal, àquela para ele tão amada e admirada, tão carinhosas palavras “minha gatinha fofinha”. Ela era tão mais livre e radical! Para si não haviam obstáculos, o limite era o auge! O prazer do risco circulavam-na por entre suas veias, admirava as tão simples oferendas do dia-a-dia. Os seus companheiros fiéis, além do marido, eram a sua esferográfica e papel. Bastava-lhe aspirar o ondular do mar, o cheiro a sal, o frio da maresia e, recostada, observando o maior esplendor divino, escrevia com fluidez com a mesma facilidade com que com água se sacia a sede.
Anos de glória passados de um ciclo aparente sem fim de vitórias e homenagens à tão célebre e amada por todos, Irís. De coração sempre aberto, reconhecida e grata, presenteava seus admiradores com o belo perfume de Amor das suas palavras, carinhosa e sabiamente articuladas por entre sua boca. Tão bom era ouvi-la!
Certo dia, com 65 anos de idade, a fluidez da escrita deu lugar ao trôpego caminhar e rastejar de palavras vazias, ao apagar do raciocínio, deixando a narrativa sem seguimento possível. Assustadoramente batalhadora, se debruçava todas as noites sob um papel e uma esferográfica e, como nunca acontecera em momento algum da sua vida, da sua mente se esvaneciam aquelas palavras que até então encantaram todos. O declínio foi progressivo: dificuldade na fala (por monossílabos), na escrita, no cálculo, constantes esquecimentos, perdas de memória repentinas, fugas de casa, crises de fúria e desespero, agressividade, dificuldades de mobilização, perda da noção do espaço e do tempo e do cuidado pessoal diário… por fim a padecer num leito, confinada a ali permanecer até que a Morte a chamasse. E chamou… Ela se foi. Pobre John, desesperado, recordando-a pelo cheiro das suas roupas. O encantamento que sempre sentira estava agora de partida; que mais lhe restava de bom para prosseguir sua caminhada? Questionava-se se ela passara a Amar o “Alzheimer” e o deixara, de olhos postos na traição, como em tantas outras ocasiões passadas sentira… mas ela sempre chegava, com aquele olhar tão doce e abraçava-o, até mesmo quando já se encontrava cognitivamente fragilizada, dizendo-lhe com lealdade “Eu Amo-te”.
Falecera enfim a célebre Irís. Talvez a Morte a tenha levado para um local seguro, onde governasse a Paz e o Amor. Talvez agora pudesse gozar totalmente daquele mundo que sempre foi só dela - impenetrável. O “Alzheimer” lhe ofertou o privilégio de viver nesse seu mundo de sonhos, de ideias, de bizarrias, de liberdade sem limites, de Amor à vida… encantamentos sem fim… A ajudou a partir da realidade tão cruelmente dura para sobrevoar o seu sonhar, que sempre a governou toda a vida.
Que nunca falte Amor àqueles a quem o “Alzheimer” acolheu; que nunca falte um sorriso, uma carícia, um estímulo, paciência e um cuidar eterno pelo respeito pela Vida dada a cada um e que até ao seu termo deve ser enaltecida no seu máximo!

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