quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Jogo do Poder


Com seus cabelos revoltos e em ondas singelas, debruça-se sobre aquele tabuleiro oval e gigante que tomara a proporção da Terra, fazendo-a girar ao seu bel-prazer. Depois de limpar com diluente os restos de tinta que sobejaram nos seus dedos após aquela obra ter sido concluída, detém-se agora, observando-a, satisfeito. Era tal e qual como tinha imaginado… tivera mil e duzentos anos a criar aquela que seria a sua obra-prima principal, a que mais Amor dedicaria, aquela que ele saberia ser estrondosamente célebre. Desenhou uma massa de terra envolvida por mares que ocupariam a maior percentagem do seu volume. No pedaço de terra submerso, soube criar os pormenores das árvores, dos planaltos, das montanhas, das rochas e dos vales. O mar saberia a sal e nele desenhou, milimetricamente, peixes diversos e algas marinhas e fungos e anémonas. Faltava-lhe, tão somente e tendo em conta os seus poderes concedidos, dar a esta obra oval eloquente, alguma vida. Concentrando-se, seus braços em torno da sua cabeça, debruçado naquela concentração maior, de repente essa obra ganha vida e se eleva surpreendentemente adiante sua cabeça e faz-se voar para lá longe… dissipando-se até se tornar um mero ponto minúsculo no espaço negro… arquivo das suas obras. Fixando um olhar apaixonado e envaidecido vê pequenos seres, semelhantes a ele, nascendo em ventres de amor e notarem, assustados, o espectáculo diante de si. Vê-os crescer e desenvolverem-se, vê-os caminhando cambaleantes, vê-os soletrando as primeiras palavras, a sorrir, a conquistar um espaço, a serem únicos, esplendorosos, inteligentes, capazes, eficientes. Vê-os a amar, a sentir, a abraçar, a acariciar… vê-os chorar, vê-os desesperados, vê-os matando-se, vê-os enraivecidos, vê-os soturnos. Desenha-os em esboços rudes numas folhas envelhecidas antes de os transpor para sua obra. Antes, detém-se para lhes traçar, um por um, uma rota, um plano, um guião, um objectivo último. Faz variar o grau de dificuldade na conquista, faz variar o carácter provável, faz oscilar a fortaleza, faz variar a beleza, a sensatez. Assim os testa e selecciona… está a pesquisar quais as características óptimas a adoptar para futuros projectos humanos vindouros. Surpreende-se, contudo, quando seres de rotas curtas percorrem circuitos elevados… estranha a perda do seu poder, estranha o porquê da omnipotência deles, quando dela apenas lhe devia pertencer. Enfurece-se e oferece-lhes provas maiores e mais tumultuosas. E, braços cruzados, aguarda, paciente. Alguns resistem, outros caem. Uns suicidam-se, outros lutam. Uns alienam-se, outros desafiam. O artista nunca satisfeito, quer mais e mais provas numa escalada ascendente e exponencial testar aquele que não vão de encontro às suas teorias, às suas hipóteses prévias. E o pequeno grande grãozinho na obra gigante, movimenta-se e contorce-se, chora e blasfema, enrubesce e desfalece, grita e sorri loucura, morre e renasce. E persiste, o teimoso! “Mas que serzinho estranho!”, retorque. O serzinho, dolorido e ensanguentado, ganhou tamanho calo que é capaz de olhar no alto e imaginar o artista… imaginá-lo a tocar nele a movê-lo como peça de xadrez… sente a sua força, sente o olhar que nele se fixa a cada instante mas, ainda assim, tem coragem para o fixar algures e sorrir vitorioso… mais, está capaz de lhe dizer um obrigada de gratidão, tem a magnificência superior e equiparada a ele! O artista repensa o seu lugar, sente-se ainda gigante, sente-se ainda criador, sente-se ainda superior… mas aprendeu, com seres minúsculos como este a relativizar e a valorizar – “Muito bem grande humano pequeno, vem até mim, cumpriste o teu intento e superaste-o… aproxima-te, já acabado, e prossegue comigo na luta pelos que não te seguiram as pegadas. Vem aprendiz heróico!”

Nenhum comentário: