quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Eu falso


Certo dia olhou-se ao espelho com espanto e reviu-se antagónica na imagem reflectida, estranhando as linhas do seu rosto, os traços do seu corpo. Aproximou-se mais e tocou na sua pele, naquelas maças de rosto salientes e com pequenas covinhas graciosas tão particulares. Sentiu antes uma pele áspera e seca, rugas na testa, um olhar lacrimejante, a pouca flexibilidade, a boca árida. Assustou-se e questionou-se sobre o porquê? Estaria ela a sonhar? Não!!! Era real!!! Gritou e de súbito caiu pesadamente no chão, daquele seu quarto, não suportando a angústia que estava a experienciar naquele momento. Eram sentimentos e emoções demasiado titânicos… desfaleceu num sonho profundo e recalcado. Viu-se em criança, brincando com plasticina num esforço vincado pela perfeição quando, de repente, vê aproximar-se o seu irmão e destruir tudo num ápice quanto o romper daquelas gargalhadas irónicas que logo a aborreceram. Viu também, já na escola primária, caminhar apressadamente até casa na fúria de contar a boa nova à sua mãe que tinha conseguido tirar a melhor nota de todos os seus colegas na ficha de matemática daquele dia. Num sorriso rasgado e genuíno, acercou-se dela, realmente contente, conseguindo a mera resposta: “Vê lá se fazes o mesmo para as fichas de Português que aí sim tens verdadeiras dificuldades e não me parece que te tenhas andado a esforçar o suficiente”. Encontrou-se então naquela amargurada sensação de insatisfação consigo em comunhão com a incapacidade percebida de que não conseguia ser aquilo que tanto seus pais esperavam dela, por maiores esforços que empenha-se. Recuou no sonho, aos seus primeiros dias e, soluçantemente, deparou-se consigo em bebé indefesa e feia, chorando cólicas e respirando vazio quando, à sua volta todos se afastavam pelo seu “mau génio”, pelo “não me deixa descansar”, “é muito chatinha”. Ficava entregue a si naquela falta de responsividade, vendo-se obrigada, tão prematuramente, a habituar-se a ser aquela que desejam que fosse quem ela mais amava, seus pais, e soltar-se dos seus instintos primários e tão desagradáveis. Fingiu-se alegre e conseguiu a aceitação necessária e o suposto “amor” dos progenitores. Mas… cresceu e atormentou-se, tão cedo, com sentimentos confusos, contraditórios e incompreensíveis. Escreveu sobre eles quando, tão sábia inconsciência, sabia não os poder revelar pela perda daquele afecto que tanto lhe custara adquirir. A adolescência fingida de normalidade, a doçura enganadora e os sentimentos reprimidos e sublimados se entrincheiraram em si tão diluidamente que deixou de saber ser ela mesma – o seu Eu verdadeiro. Mas, naquela adolescência crónica já em adulta, sentia-se invadir pelos mesmos sentimentos, os mesmos desejos, os mesmos refúgios, as mesmas aflições de sempre. Revisitavam-na nos sonhos aquele passado infantil tão coberto e, neles, tão disfarçado, sem que conseguisse decifrar seu significado. Sabia não se encontrar bem; sabia precisar de ajuda; sabia socorrer-se do leviano para manter aquela ilusão corrosiva e dependente; sabia ser quem não era em todas as situações e ser-se mais verdadeira naquelas folhas estimadas escritas pelas inúmeras esferográficas coleccionadas. Quer libertar-se; algo a cerca com pesar imenso; aquele vidro transparente e lúcido mas igualmente forte e inquebrável. Tirem-me daqui por favor!!! Salvem-me!!!

Acorda sobressaltada e, recordando-se do latente, sorri! Sabe que aquele é o primeiro dia da sua transformação naqueles passos de bebé que nunca chegou a ser, naquele leitinho quente materno que nunca saboreou, naquela ternura que julgou não merecer, naquelas necessidades primárias não satisfeitas. Sabe que os primeiros passos iriam ser atolambados e cambaleantes mas que, ganhando equilíbrio e força, se ergueria e venceria a vida, cinzenta clara e escura, que a chama à 30 anos! “Eu conseguirei!”

07/08/2009

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