sábado, 28 de março de 2009

Batalha Existencial


De olhar profundo pestaneja o sol que pela sua janela pequena espreita beijando-a com um bom dia. Quantas manhãs vivera e ainda assim, nada lhe era mais apraz do que sentir o calor do grande astro deliciando-se na sua pele enrugada e velha. De cabelos desalinhados e aveludados de um branco luzidio, passeia-se agora até à sua cozinha, aquela onde vivera tão bons momentos no apogeu da sua existência onde os sonhos futuros nos animam a prosseguir, mesmo quando lá fora sopram ventos temporais. E senta-se com dificuldade, aquele perfil magro e curvilíneo, na cadeira de balouço, enquanto saboreia com deleite a seu chá preferido – menta. Fecha os seus olhos castanhos esverdeados por breves instantes e sente-se voar para aquele passado onde se lembra ter vivido angústias e situações de tensão tais que a impediram de aproveitar melhor a vida breve que ignorava ter. Saudades daqueles rostos ainda se afiguram na sua mente mas cujos nomes se deixaram desaparecer da sua memória. Sorri naqueles dentes já não seus e ternamente segura a sua chávena de sempre, onde se lê o nome “Joana”. Bate forte o peito num coração descompassado e fraco pelos seus já 87 anos a dor da saudade dos seus netos. Mas anima-a pensar que estarão a irromper pela porta em menos de duas horas beijando-a e abraçando-a, fazendo com que se sinta novamente querida e apreciada como naqueles tempos de jovem adulta quando lhe diziam com franqueza: “Basta olhar para si para ver que é boa pessoa e que não é capaz de ter uma atitude de maior pulso já que o seu modo de ser não permite! Você é alguém muito querido para mim.” Não foram muitas as que embalaram com emoção de tamanhas palavras sentidas, mas experienciou naqueles momentos resumidos que valia a pena continuar a sua luta e, de certo modo, a essas pessoas devia a sua vida ter sorrido, apesar do esforço hercúleo, nunca descurado.
O tempo mais desejado, aprendeu a perceber, que se atrasa e que é impossível passar sem olhar demoradamente para o relógio dependurado naquela cozinha vazia. Mas finalmente eles chegaram! “Meus Deus, meu filho Duarte, há quanto tempo… como posso eu passar tanto tempo sem te ver sem desfalecer?”… “Minha querida netinha Margarida, tão crescida, tão bonita, tão vivaz…” - saudades sufocantes apenas te ter em fotos na volta do correio.
- Margarida, queres ouvir uma história da tua avó velhinha?
Margarida olha-a com carinho imenso e sentada ao colo mole de Joana, diz na sua voz de 4 anos que sim, acenando vigorosamente coma cabeça.
- Então escuta com atenção, meu amor, está bem? Porque a história é bonita e um dia, quem sabe, a contes aos teus filhos e siga usada por muitas gerações.
- Está bem avó. Vou escutar com muita atenção. É sempre tão bom ouvi-la… – Sorrindo naqueles olhos negros grandes pestanejantes, que espelham já um carácter doce, meigo e gentil. - Joana revê-se nela quando tinha a beleza daquela idade, em fotos retratada.
- “Era uma vez um soldado muito magro e simples que fora mandado para a batalha. Era franzino, inspirava amor por todos e sentia-se tremendamente triste ter de combater contra aqueles seus irmãos. Então é que, pelo seu grande coração, sofreu tamanhas golpeadas daqueles que, apesar de considerados inimigos pelo mundo, eram semelhantes a si e apreciados nas qualidades que sempre vira nos demais, mesmo que apenas fosse a beleza do seu traje de batalha que lhes dava algum brilho e brio. De cada vez que se vira obrigado a defender-se, soltava uma lágrima. E tantas foram as vezes que teve de usar da maior rudeza de si para com os outros, que se formou, diante dos seus pés, uma grande lagoa salgada. Não aguentando mais, querendo escapar de si, de quem se obrigara a ser, mergulhou naquela sua lagoa, soltando um grito de tortura… queria fugir… não sabia bem para onde, mas ao olhar para os seus actos inglórios, para a destruição avizinhada do seu ser, para o quanto se perdera de si, do seu jeito doce, tímido, amável e sempre sorridente, debateu-se com uma imensidão de sentimentos múltiplos e uma vontade irresistível de desaparecer. E assim mergulhou, dentro de si, do sal das suas lágrimas e viu coisas espantosas acontecerem: uma ilha lá ao longe, verdejante, aprazível, aconchegante, coberta de flores de espécies várias e desconhecidas onde se apercebeu de vozes ao longe, gargalhadas, música calma e dançável e sentiu seu peito rebentar. Eram todas aquelas pessoas que marcaram a sua vida de forma mais ou menos positiva, de forma mais ou menos intensa. Quis aproximar-se, abraçá-las, pedir-lhes desculpas mas embora usasse todas as suas forças, estas revelavam-se insuficientes para alcançar aqueles que perdera, que assaltavam a sua memória, ora produzindo alegria, ora tristeza. E deixou-se abater por um sentimento de fracasso, de terrível frustração, de terrível desencanto pela vida. Eis então que nesse momento alguém que irradiava luz, se acerca dele e com um gesto carinhoso e breve, lhe faz erguer o queixo e fazê-lo olhar. Era ele mesmo, mas iluminado, com uma áurea de paz e amor enormes e, sorrindo, confessa-lhe: - “Este serias tu caso o mundo lá fora não te corrompesse. Não te humilhes, não te culpes, não desejes que o tempo regresse e abraces todos aqueles que amaste e que, sem te aperceberes, se afastaram de ti. Olha adiante… todos nós cometemos erros, somos imperfeitos mas existe dentro da cada um de nós a possibilidade de sermos deuses, livres, bondosos, meigos, humildes e felizes. Mas, quando o mundo se afigura tão oposto à beleza desta ilha, todos se fecham sobre si, todos se protegem, todos se escondem, todos revelam uma aspereza oculta… é então que acontecem as dificuldades nas relações. Como pode haver amor entre dois seres se o mundo se esqueceu que essa palavra simboliza um tão invulgar sentimento? Como podem dois amigos de longa data se manterem juntos, quando a ruína espreita, enegrecida? Como poderá alguém compreender-te se cada um olha para si e para o seu umbigo, esquecendo-se de sentir que há mais algo para além dele, algo mais para além do visível, uma tarefa mundana a cumprir? Repara em ti: és jovem, tens dentro de ti todos os vitoriosos ingredientes para triunfares na vida. Mas passarás pelos espinhos até alcançares a proa da rosa. Mil lágrimas hás-de derramar para conquistares o sorriso de uma criança; duas mil para seres valorizado; três mil para seres amado. Mas não esmoreças. Há batalhas que terão de ser enfrentadas de peito firme, haverá quem não te entenda, haverá quem te julgue mal, quem interprete mal os teus feitos, quem desconheça o teu propósito de vida… mas lembra-te que és único e, se vives entre os mortais é porque deste provas de que eras capaz de vencer aqui, neste mundo desencantado. Por isso rompe esse sorriso, avança perante todos sem armas, mas acautela-te… não deixes que te firam, mas segue amando e acreditando que na luta pela glória, só quem morre e sabe nascer de novo descobriu o caminho certo para a felicidade.
Sorrindo então percebeu que necessária é a firmeza de atitudes, a marcação de si, do seu lugar, mas que a par disso, haverá sempre alguém que mostre sinais de precisar de nós, sinais de que merece consolo e aconchego. E nesta luta existencial, há que saber sorrir perante as maldades e adversidades e prosseguir olhando menos para si e mais para os outros… tantos a precisar de serem descobertos, revelados, observados atentamente e valorizados!”
- Querida netinha, tão perfeita na rudeza da escultura em construção, escuta com atenção a lição da avó: -“O mundo, embora se afigure selvagem e desnutrido, continua a merecer o nosso encanto para juntos, passando a palavra da sapiência e do amor a todos, saibamos o melhor caminho a seguir para alcançar, não o cume da vitória material, mas o cume da vitória espititual… essa sim tão esquecida! Nutre e deixe florir teus frutos – é essa a tua tarefa neste mundo, aquela que por vezes esquecemos de prosseguir confundindo-a com outras parciais. Sorri e encanta multidões, meu amor pequenino!”

28/03/2009

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