sexta-feira, 9 de abril de 2010

Miopia Psicológica


Ela chegava com sorriso fingido e glaciar nos lábios, convincente aos preguiçosos, beijava e acarinhava e depois desaparecia para um recanto do lugar, atenta aos passos que pudessem surpreendê-la. Pegava numa folha de papel e chorava letras. Não se ouviam os soluços da dor, era tudo muito bem abafado. Sentindo a aproximação de alguém, escondia-se e limpava-as. Ela, maior, não notava; cedo voltava as costas e continuava o seu labor. Ela prosseguia até derramar no papel todo seu sentir escondido que jamais revelava: mãe, pai, professores, colegas e amigos. Permanecia um anjo sorridente, sempre de bem com tudo. Assistia à violência e sentiu-a na pele; houve crueldade imensa, males passados não observados mas vividos; mãos sujas pousaram sobre o seu corpo tenro. O que mais a assombrava era o ambiente que se respirava no lar… pesado. Nada amor, sim fingimento. Confusão de papéis os pais eram os filhos, os filhos eram os pais, tudo emaranhado, tudo fundido. Filhos consolavam, filhos ouviam, filhos para isso serviam. Filhos não tinham espaço para também eles falar de si. E os erros não eram tolerados. Logo a palavra feia e rude e áspera saia por aquela boca ferida, de um homem com cicatrizes de arrombos de criança também ele pouco embalado, e feria os seus frutos. Podiam chorar que não havia consolo; podiam fugir que ninguém se apercebia. Mas os filhos-pais continuavam a ser responsáveis pelos grandes. Duas tarefas, a de cuidar e a de serem educados, consoante os dias e sortes cambaleantes vindouras. Perante confidências tamanhas e segredos escondidos, pedidos de boca fechada, ela sabia que tinha de ser mais que uma criança. Estavam a pedir-lhe mais: ser mãe que embala e repara. Mãe essa que a mãe não teve… ou que teve e não a soube olhar como filha; sim, servente. Mas a filha actual, 12 anos, que culpa teve de erros passados? Herdou fortunas imensas e pesares infinitos. Em 40 kgs carregava 70 kgs. E continuavam a carregá-la, sim, os grandes não a ouviam queixar-se porque lhe taparam os lábios com cola. Raiva agora do experimentar revelações. Já está farta de os ouvir, agora, de os cuidar. Queria ser ouvida mas em contraponto recebe acusações e indicadores erectos sobre si ditando que tudo que em ti era bom, se esvaneceu, e que o anjo desapareceu em ti. Doi ouvi-lo! O quanto custa! Exigiram dela a perfeição, ela soube consegui-lo, desdenhou a sua adolescência e nunca se opôs. Agora quebrou e está de luto pois que nunca teve o abraço que desejou, sempre invejou aos que aos olhos deles se revelava grande, sem razão e assim foi crescendo progressivamente mais pequenina, enojando-se ao espelho. Apagaram os teus sinais calados e viram tudo menos a ela. Foi secundária, pela ordem cronológica e também afectiva. Sempre houve solidão. O corpo enfim padeceu mas que causa nenhuma física se encontrava. Eram os pesares a deixar mossa. Pesares que ainda hoje estão vivazes, claros e vivos e que ela agora se prontificou a sarar. Agora é hora de colocar óculos e contornar a miopia de 25 anos. A felicidade nunca a habitou, mas agora anseia-a. Sente merece-la. Mais que tudo sente-se heróica e forte, pois só assim se percebem os alicerces em plena ruína. Custa-lhe crer a falta de amor em laços de sangue; custa-lhe crer agora a incompreensão subliminada. Mas crê ser capaz de melhorar e ser melhor para um seu fruto. Sente-se capaz de finalmente florir após tantas primaveras. Que assim seja.

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