sexta-feira, 1 de maio de 2009

Ânsia de fugir


Cabeça jogada sob as pernas, enrolada sobre si naquele lugar negro, fechado, de quatro paredes sufocantes a aspirarem-na divertidas. Contendo o choro, aquelas lágrimas que gritam por liberdade, tal como ela, mas que perante força maior se viam confinadas ao mesmo espaço. Naquele chão frio sentia a sua pequenez, a sua vulgaridade, o quanto tinha sido esquecida por todos que ontem a amararam, a solidão a rasgar-lhe o peito, a corroer a sensatez… Olhando em seu torno uma résquia de luz atravessava tenazmente os recantos quadrados de uma porta de metal férreo. As janelas inexistentes faziam-na encolher-se de asfixia. Sentia o seu coração a pulsar forte, as mãos magras e cálidas trémulas, a respiração irregular e insatisfeita. Sob a mesa solitária junto com uma provisão de cama, estendiam-se folhas rasgadas, riscadas, escritas em palavras medrosas e repousavam-se agora, à espera dela, à espera que os seus sentimentos as preenchessem novamente sob a luz ténue de um candelabro. Nas paredes pintadas toscas de tentativa de um pedido de socorro, falando pela voz calada dela, reclamavam por mais cor que, deliberadamente, optara por se abster. Num chão um prato, um copo, um tacho e uma colher… a música improvisada que dão a fazia voar para outro lado distante: havia nela pelo ar aves cortando o tecido azul dos céus, haviam árvores estendendo os seus braços ao sol quente, havia chuva a salpicar a sua face rosada, flores colorindo a sua íris e um espaço rodeado de mar salgado, ondulante, vigoroso, rodopiante dos sentidos. Era livre quando seus olhos ignoravam o escuro e enclausurado pequeno mundo seu.
Coberta pelos seus cabelos densos, negros e compridos, num vestido encarnada encardido usado, rasgado, desgastado pelos quinze anos de enclausura, olhos verdes cabisbaixos, semicerrados, gesto singelo e jovial… belo e magro, era ela, Isabel.
Ouvindo passos rápidos pesados, ergueu-se de solavanco e zombeteira aguardou. Sabia que era o fim do mártir. A abertura daquela porta ronceira nunca tinha imaginado vir a ser tão dura. Os seus olhos ardentes perante aquela luz que lhe batia com rudeza, fê-la socorrer-se do grito de dor. Cambaleante rastejou-se naquele imenso corredor azul claro e brilhante até sentir uma mão que a empurrou, rudemente para outra sala. Desta vez, carregada de cores, de requinte, ladeado por muitas pessoas esbeltas, perfumadas, saturadas de pó de arroz, fingindo alegria ímpar e cuidando do seu vestir, do seu calçar, da sua pele, da sua maquilhagem – ultrajes mascarados. Num gesto calmo e clamante, lhe tiram as vestes sujas e a fazem deitar-se naquela água esfumada e impregnada de sais aromáticos. Do seu cabelo cuidaram e cortaram e sua pele pintaram de alguém que não era ela. Instruíram-na a usar do seu sorriso e a falar jamais. Num vestido branco acetinado descrevendo as linhas curvas do seu corpo foi adornada com brincos de esmeralda, pulseira de diamantes e correntes de ouro pesadas sobre o seu pescoço mole. Desconfortável numa prisão de luxúria sorria àqueles que a vieram ver e festejar. Sorrisos falsos, olhares incisivos e reprovadores, posturas erécteis e rígidas, a mesquinhez dos comentários mordazes perante uns e outros, a inveja da beleza e sabedoria, a ganância, os bolsos carregados de dinheiro imundo, o tactear do solo aqueles saltos pontiagudos roçando a aspereza daquela outra e demais prisão, tão ou mais deprimente que a primeira. Ignorada agora e reprimida, fugiu para um canto embalando-se da maldição daqueles dois mundos sempre seus… incessantemente seus. Haverá escape? Gritou por papel e lápis. POR FAVOR! Acederam, a custo, ao seu pedido tão pouco elegante. Cobriu a sua pupila daquela pálpebra branca e pintou-se longe dali. Cabelos soltos em fronte aquele vento que Deuses de Amor lhe sopravam, fazendo cintilar as madeixas cobertas de brilho num rosto moreno rasgado pelo verdadeiro sorriso naqueles lábios rubros numa finura gentil e perfeita. Naquele lago de água límpida e doce, seus pés pequenos e descalços chapinhavam com ânimo próprio enquanto o verde e perfumado das flores e plantas cantavam com ela um cântico de um hino antigo de prazer pela vida. Num barco improvisado deslizava-se por aquele rio manso em ondulações gentis para um bom embalar. As aves, os animais selgavens junto dela em círculo exaltavam-na como o centro do seu universo, acercando-se na esperança de uma carícia mergulhada naquele olhar profundo e perdido de querer. Saltitando naquele campo enlameado, dançando despreocupada e nua olhando o céu com encanto e soltando gargalhas sinceras… Uma cabana modesta, árvores de fruto adocicados em seu redor, uma cama de rede, o pôr de sol ao fim da tarde, aquele livro aberto em seu regaço e o consolo da dádiva de por fim assim viver… nos seus sonhos mais profundos e invioláveis. Jamais abrirá os olhos àqueles mundos que de extremos se igualam na miséria. Criou o seu espaço ilusório e foi livre!

30/04/2009

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