sexta-feira, 6 de março de 2009

Silêncio


Na turbulência de sons imperceptíveis e ensurdecedores, lá se encontrava ele, rodeado de gente, conhecida ou não, amiga ou anónima, que lhe produziam os mais variados sentimentos, tanto de amor como raiva, tanto de tristeza como de alegria, tanto de admiração como de indiferença. Caracterizava-o o silêncio. Sorria apenas… um sorriso tímido, nem sempre sincero, por vezes audível, sendo a sua sonoridade motivo de incomodo por alguns outros. Evitava palavras e, mesmo entre amigos, sempre preferiu escutar a tomar a voz do discurso e pronunciar-se acerca de que lado pendia em determinado assunto. Nem seus pais, que por mais atenciosos, carinhosos e maximamente companheiros que fossem, se apercebiam do que ele sentia. O seu sorriso, para todos, era sinal de alegria revelada pela vida, em qualquer campo onde ela actuasse. Mas, a realidade dele, essa, era completamente diferente. Percebia, mas não era entendido; compreendia, mas não era compreendido; era bom ouvinte mas nunca teve alguém que a questionasse para além do básico, julgando saberem tudo o que o sorriso fácil, que ele sempre mostrava, revelava.
Por vezes sentia-se desaparecer, esquecido. E viu passar diante dos seus olhos, esses sim, reveladores da emoção reprimida, muitos que o procuraram à procura de conselhos, à procura de compreensão e companhia, mas que, mais tarde, quando outro alguém tomava o seu lugar ou quando simplesmente se enfadavam do mesmo rosto compreensivo e risonho, afastavam-se. Outras vezes acontecera também, julgado injusta e impiedosamente, apontado por autor de enredos e histórias imaginárias, fora caluniado ao ponto de se sentir de tal modo ofendido pela ingratidão que decidia, por sua própria vontade, afastar-se de todos estes malsins, rebentos imaturos do viver.
E à medida que os anos passavam, assim se viu cada vez mais sozinho e “abandonado”. Perguntava-se, sem voz audível, sobre o porquê e não achava nunca resposta capaz de explicar o isolamento. E reflectia ainda mais, consigo mesmo, frente ao rio, no metro, no autocarro, no jardim… de olhar vago e nebuloso acerca do porquê dos acontecimentos que por ele via passar como personagem figurante… nunca principal. Admirava a eloquência, o bem falar, a capacidade de persuasão; lamentava-se do falar por falar, das palavras fingidas e sem sentir, da capacidade imperdoável do ser humano pôr em palavras tudo o que não lhe pertence nem lhe é seu. Transtornava-o verificar o quanto se tinha perdido a capacidade de perceber o que não é dito, mas apenas gesticulado, pela postura, pelas mãos, pelas expressões, pelo motriz expressar de forma ampla e até mais alargada o que a alma reclama por dizer. Quem silencia? Quem se cala? Quem fala sem nada dizer? Quem ensina pelos comportamentos?
Quem estaria capaz, no mundo deste jovem rapaz, de o compreender se adoptava, de forma voluntária, outro modo de expressão? Pensava para consigo talvez ser mais aceite e entendido entre os que, infelizmente ou não, não tinham a capacidade de ouvir e falar. Com certeza faria profundas e intensas amizades. Certo é que, sendo diferente por livre arbítrio, se sentia, por vezes, desesperadamente infeliz. Então, como a voz dele não evocava os sons mundanos, escrevia. Desde tenra idade percebeu o quanto o papel era seu bom amigo e confidente. Ao depositar nele, através de traços rápidos de tinta, o que aos outros calava, no final, voltava a sorrir e a ser a mesma personagem aparentemente alegre, sem problemas e preocupações, do costume.
Sorrir cativava mas não prendia quem inicialmente o apreciava. Talvez por faltar, nesse sorriso, o reflexo da alma ou, tão simplesmente por ser ele destinado à reflexão do que em torno de si existia e chocava.
Fiel ao seu carácter, por anos inalterado, fez-se escritor e apreciado por alguns. Sua escrita transparecia, aos mais atentos, emoções fortes e sentidas, desabafos, episódios da sua vida que ninguém percebera que viveu, os amores e desamores sofridos e calados, a visão de futuro pseudo-optimista. Mas, da arte de escrever do qual tomara como única profissão, muitas foram as ocasiões de perda de vocabulário capaz de o fazer expressar exactamente o que o coração verbalizava. E, frustrado, por palavras vagas, sem forma, sem conteúdo, sem rima, sem paixão, enfim, sem vida, assim se esforçava por tentar fazer-se “ouvir”. Deste esforço, a escrita tornava-se confusa e opaca… Poucos a percebiam, assim como poucos ou até mesmo nenhuns o entendiam através dos gestos e do seu companheiro sorriso. Ainda assim, sem pretensão de sucesso na sua arte, aliviava tensões ocultas e só isso bastava para o mover a continuar. Era feliz? Sim, era, na sua forma particular e solitária de ser. Condenável silêncio? Não, ele nos faz evitar problemas e maximiza o poder de reflexão e de sensibilidade. Quem se cala, mais disposição tem para usar o olhar para bem observar e, para assim, melhor compreender. E porque o mundo é irado, há que saber entendê-lo para melhor nos adaptarmos. Ele seguia, então, o caminho certo? Sim. Mas nunca nenhuma opção não envolve riscos. O silêncio potencia os sentidos e provoca a solidão da revelação do que a sociedade procura sempre esconder. Mas ele mantinha um só intento: um dia, nem que pós-morte fosse, todos falassem a sua língua surda e se entendessem em amor e maior solidariedade. Audaz sonhador, mantém o teu silêncio, a tua tenacidade… encontraste o caminho certo do conhecer!

05/03/2009

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