quarta-feira, 2 de maio de 2007

A Arte de Viver


Somos uma tela nua quando nascemos. Reclamamos ao mundo uma cor, uma textura, um movimento, um espaço… Na pureza da infância, marcamos esboços, construímos linhas toscas, distorcidas, pouco nítidas, disformes… Aos olhos do artista somos pintados de azul céu, vermelho vida, amarelo alegria e cinzento indefinição. Crescemos, e desejamos pintar a nossa vida em tons coloridos, vivazes, reluzentes, invulgares… ser-se jovem é ser-se irreverente e destemido… não há limites! As cores do mundo não conseguem definir a multidão de sentimentos, afectos, carências, desgostos, desventuras, confusões e soluçares tristes da adolescência. A tela está negra agora… o futuro parece longínquo e demasiadamente difícil de alcançar… os dias lilazes, as horas roxas, os amigos a máxima sinfonia… Somos tudo, o mundo! Porém a vida, aquela da infância fogaz e pura, se desfez e deu lugar à sombra… É tudo tão insuportável! Ouvem-se ao longe gritos de terror, de desventura, de desânimo, de perdição. A vida só aos fortes pertence! Radicaliza-te, evidencia-te, mostra que és mais e melhor que todos… não cruzes os braços… o tempo é ligeiro, amigo, mas perdível! Tudo é tão temível! O fruto da vida, os pais, ainda lhes cheira ao leitinho bem quente do bebé, já a semente se revolta contra eles e balança pelo ar, ao som do vento… colhe tempestades, tumultos, vagueia sem razão… cheira agora a acre, asfalto quente, verde impalidecer, amargo sentir. Mas para onde me leva o vento?… a minha tela, tão negra! Pinta-me de outra cor, artista, pois já não aguento mais!!! E soltasse a voz áspera, mas forte, de força aguçada pela maior razão. Puf! Livrei-me! Por pouco não voava para paragens incertas e destruía as minhas ramagens. As minhas raízes? Onde estão? Perdi-as? Não! Não!... Estão comigo, pertencem-me, são a minha marca única, a minha impressão digital. Meus pais, perdoem-me, precisei viajar! Hum! Que bom o regresso ao Lar… oh mamã, te amo tanto! Oh papá, te admiro… és tu o traçado da minha viagem que quero seguir! Ajudas-me? Quero aprender… saber mais, conhecer, conhecer, conhecer… a tela é cinzenta lá bem atrás, mas repara, vê melhor… que lindo laranja aqui! Agrada-me o laranja… mas também o amarelo… qual seguir? Hum… será que em mim existe lugar para tanto? Ai, mas prefiro o laranja… sim, é com o laranja que quero pintar, bem forte, a minha vida! Ouço já tantas crianças sorrindo… ai que bom é ouvi-las! Há pouco choravam… esperem, já vou a caminho… vos embalarei a todas, minhas doces esperanças! Ai, mas porque ouço tantas a chorar?… é tão aflitivo o som… respiro fundo e… não! Sangue não!!! Não, não morras! Não, não sofras! Quero ajudar-te… diz-me, basta dizeres-me, o que queres de mim? Farei tudo por ti, porque sou eu, aquela leve madrugada primaveril, sabes, aquela que tem muita luz?! Eu sou capaz! Vem comigo! VENHAM TODOS! Ui, são tantos… e tanto pranto… ai que não aguento… sinto a dor deles todos, quase desfaleço. O som do tambor, da sirene, do alarme… a ambulância! Aqui! Me levem! Socorro! Não, não posso ir mais além, quem sou eu? Eu sou aquilo que tu não és, nem tu, nem tu, nem tu… Ah, não vos pertenço! Agora percebo! Aquela andorinha picou-me a asa no outro dia… piei, piei… ninguém acudiu! Mas o que se passou com eles? Fugiram? Se calhar já encontraram outro ninho melhor do que o meu… Não se vão embora, quero-vos aqui comigo! Porque me deixais? O vento sopra frio… agora já não consigo voar, nem posso procurar por eles… perdi-os! Tenho frio! Porque me picaste a asa? És ruim! Esqueceste-te do que fiz por ti? Ingrata! Quando te perdeste da andorinha mãe, velei por ti e levei-te ao encontro dela… Esqueceste-te? Não, não vale a pena, ninguém responde… que silêncio desesperante! Não! Ganharei forças, sozinha, e semearei amor, mas só a quem mereça! Nem que apenas haja, no mundo, no oceano, uma gentil alma, já tudo vale a pena… ela merece e vou ajudá-la! Já se vê, na tela, borboletas…como elas mudam! Tão bonitas! Será que também eu me mudarei? Xi! De que maneira! Não te lembras como eras há uma década atrás? Tão tenrinha, tão suave, tão frágil…Agora já não! Olha bem para ti, esse coracãozinho cheiinho de cicatrizes. Ainda te doem? – Um pouco. – Deixa, isso passa; repara bem que se tornou mais forte! Vês, tudo na vida tem o seu lado bom… tudo, tudo, acredita! Hi, que se passa comigo? Estou a virar lagarta? A minha pele está a ficar tão enrugada! Que feia! Oh pintor, passa aqui um blush, por favor! E silicone, já agora… até já a água repelo! Mas, quem são estes aqui ao meu lado… que coisa, não me largam! – “Oh Maria, és tão esquecida, não vês que são os nossos filhos!” – Ups! Pois são! Tão pequeninos… e se os machuco? Têm asas tão lindas, tão cheias de cor… e olhos grandes, negros, parecem magnetite. Como vos quero bem, meus rebentos! Vinde à mãe! A mãe ensina-vos a voar, só um bocadinho, está bem?… depois terão que partir, seguir o vosso próprio rumo, a vossa ramagem. E a tela, como está agora? Vou-lhe confessar, pintor, você tem cá um jeitaço! Está aí uma obra de arte! Tantas linhas compridas, escuras e claras, coloridas e reluzentes, transparentes e ocultas… por onde quer seguir agora? - Não sei, mas parece que me falta alguma coisa… cheira-me a fresco, inacabado, entendes? – Posso dar-lhe uma dica? – Diga, diga! – Falta o diamante, sim, o diamante… – Ora bolas, como poderia eu ter-me esquecido do diamante! Aquele cheirinho a chá de tília, bem quente, a ferver, junto à lareira… ai que bem que se está à lareira… doem-me as costas, não sei como hei-de estar! E esta artrose, que me consome! Neto, vai apagar o lume, senão dou cabo dos legumes! Já me custa a levantar, minha jóia! Vá, agora anda cá que eu conto-te uma história de quando era novinha… uma pequena joanina, muito perfeitinha, todos me adoravam! Ah, que bons tempos! E o teu papá, onde está? Já à tanto tempo que não vos vejo, meus filhos! Sois a minha riqueza, o único motivo de pulsar… e os netinhos também, é claro! Que saudades tenho dos meus pais… que Deus os tenha em eterno descanso! Que velem por mim que não tarda lhes farei companhia lá… no alto… dizem que aquilo é bonito… tem “spã” e tudo! Hihi! Que espere mais um pouco… já vou! Não há pressa nenhuma! Estou enternecida com esta música… escuta! Dos meus tempos de mocidade! Se não fosse esta vista que já não vê uma agulha no palheiro até lia um bocado. Enfim… faço um croché! Pior ainda! Oh meu rico netinho, anda cá à avó de preto, conto-te uma história: “Era uma vez um rio, muito comprido… que comprido que ele era!… medonho até… tinha muitos afluentes, regava os campos de trigo, as vinhas e oliveiras e a água era tão boa, tão doce, tão fresquinha! Todos a bebiam. Até chegaram a dizer “Nunca digas desta água não beberei”… chamavam-lhe a fonte dos amores! Quem a bebesse, parece que revitalizava, ficava jovem, alegre, transformava-se, apaixonava-se… No fundo do rio não haviam calhãos, nada disso, mas sim pirites, ametistas, ágatas, quartzos delicados, mica… que bem que brilhava! Um dia, passados anos e anos a molhar muitas bocas, a humedecer muitas sedes, a regar muitas plantinhas campestres, como os girassóis, as papoilas… secou! Que falta fez! Tanto choraram, tanto horror, tanta exaltação, tantos gritos, tanta negação, tanta revolta e incredulidade… mas secou, secou… acabou! Nada dura para sempre, tudo tem um fim… mas a vida de outros continua! Engraçado… o rio secou, mas aquelas pedras, minerais, rochas… que lindas! Pois é, a fonte seca, mas a alma não esquece o que é de bom, e as memórias ganham vida própria e sorriem-nos, naquele prado rochoso e verde, de braço no ar, acenando, dizendo “Até já, te guardarei para sempre!””. Que belo perfume a rosas, as aves chilreiam alegres, que tela linda… perfeita agora! Bravo, meu artista!

2 comentários:

Pedro disse...

Que bem que escreves... quem escreve assim só pode estar de bem com o mundo. Por momentos invejo-te. Gostei imenso. Primeira coisa que faço amanhã é reler o teu texto, que transpira a vida. Já estás nos meus favoritos.

Unknown disse...

Olá pikenita!
Estive a ler todos os poemas com mais atenção e sabes o que é mais interessante no teu blog? É que se gosta logo da primeira vez mas quanto mais vezes se lê mais se gosta, porque descobrem-se sempre novos pormenores, novas interpretações...Adoro!
Gostei especiaalmente do "Desejos", que ainda não conhecia...