domingo, 18 de outubro de 2009

O último


Haverá esse último e derradeiro dia em que as portas se fecharão e ficaremos todos na escuridão. Por debaixo das cirurgias plásticas, da maquilhagem e das roupagens doiradas, haverá um coração que, por maior a evolução da medicina, irá parar de bombardear os tecidos. Desoxigenados, morrerão. Tudo terminará. E se antes um dia fossemos avisados desse derradeiro dia? Que faríamos?
Há várias opções: fecharmo-nos num quarto e esperar, fitos a um relógio, aquelas penosas 24 horas passarem; estarmos com amigos e família e beber uns copos, comer bastante; fazer de conta de como se não soubéssemos dessa informação e, como sempre, acordariamos cedo, correriamos até ao trabalho, lidariamos com o stress vindouro e terminariamos o dia com o cansaço habitual ou… simplesmente fazeriamos aquilo que sempre desejámos fazer e que por cobardia nunca decidimos pôr em prática? Serão umas meras 24horas suficientes para superar todos os erros de uma vida? Seriam essas horas suficientes para compensá-los? Saberiam ter a sensatez necessária para amar quem amaram em silêncio, pedir perdão a quem já perdoaram à longo tempo; abandonar o trabalho aborrecido e fazer realmente aquilo que sempre desejaram fazer e que por servidão à cultura nunca fizeram? Teriam essa coragem? Usariam o seu melhor perfume? Usariam aquele serviço de copos de cristal à tanto escondido e nunca usado? Tomariam aquele duche de pétalas de rosa e lá se demorariam indefinidamente, gozando as essências? Iriam visitar os vossos avós na aldeia abandonada depois de 20 anos de ausência? Iriam procurar as vossas amizades de infância perdidas? Procurariam saber do vosso primeiro namorado(a)? Diriam aos vossos filhos o testemunho da vossa vida, sem máscaras? Dormiriam, nessa noite, junto aos mendigos e os deixariam, pela primeira vez, falar? Veriam o pôr-do-sol? Observariam a beleza das cantigas das aves nos céus? Notariam o encanto da lua? Leriam aquele melhor livro, preso na prateleira, ganhando pó? Observariam as plantas que, afinal, têm vida? Sorririam àquela vizinha idosa incomodativa e, acima de tudo, carente? Diriam “amo-te” ao namorado/marido/namorada/esposa? Rolariam na relva? Abraçariam as árvores? Dançariam ou cantariam? Gritariam? Fariam parapente? Fariam escalada e canoagem? Se lavariam na lama, sem enojo? Chapinhariam nas poças de água após a chuva, no vosso bairro, diante do olhar de todos? Dariam todo o vosso dinheiro, guardado debaixo do colchão toda a vida, a uma qualquer instituição de solidariedade?
Do que esperamos nós, afinal? Pelo último dia para finalmente reflectirmos sobre o porquê da existência? Para tomarmos nota dos dias que passaram por nós, anónimos e sem sentido? Vamos aguardar pelo último dia, incógnito, ou agiremos já como se todos os que daqui em diante se seguirão fossem esse último?
Isto para lembrar, já esquecido à muito, das pequenas grandes maravilhas da vida!
Para reflexão.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Improdutividade



Que génios estamos a criar? Que liberdade de mentes estão a ser construídas? Haverá liberdade numa primeira instância? Ou formatações, cérebros mecânicos? O que nos distingue dos antepassados sábios e geniais? Porque sentimos que estamos numa fase de pobreza intelectual? Um período anónimo no tempo que jamais será recordado? Apesar de tudo, sente-se a grandeza daqueles que por ti passam na rua? Pergunta-lhes algo maior do que o padrão e verás a resposta. Entristece-te ver estas roupagens vazias? E ao entristeceres-te, fazes por seres diferente? Ou segues igual caminho, aquele caminho que a sociedade criou, que te compactou, que te aprisionou? Onde está tu? De que servem os pais? Que serve a escola? Que serve mil anos de estudo intensivo quando dele devoras sem sequer mastigar? Como adquires como certo tudo que se apresenta aos olhos aprazível? Porque não assimilas? Perdeste a capacidade de reflectir? Perdeste a capacidade de criticar? Perdeste a capacidade de argumentar? Perdeste-te, no fundo? E porquê? Estudas na faculdade e vais a congressos. Sabes meia dúzia de palavras decoradas e estas vomitas aqui e acolá àquelas mentes ainda menos vazias que a tua que te acenam, afirmativamente, robotorizados, que tudo o que dizes é espantoso! Espantoso??? Quanto tempo despendes em cada dia para pensar acerca do mundo, da vida, de teorias, de hipóteses? Quanto te dispões a gastar? Ainda tens tempo livre, sequer? Então diz-me, pois que não sei, não percebo nem nunca vou entender: o que é viver, afinal? Correr ou marchar? Caminhar ou atamancar? És livre? Tens real certeza que a escravatura terminou? Quem te disse tal parvoíce? Quem te incutiu, quem te interiorizou tal disparate? Corres e foges do tempo. Em criança queres ser adolescente, em adolescente queres ser adulto, em adulto queres morrer… Queres dinheiro e luxúria, queres que te formatem a mente, queres ser prisioneiro. Consegues perceber a falta de lógica de tudo isso? Se a vida não é criar e produzir, de que vale? E surgem depressões, fobias, psicoses… Cheguei ao cerne da questão? Coloquei eu o dedo na ferida? Tu não és tu. Tu és apenas um mero produto factorial, igual a tantos outros. E sorris, aparvalhado e alucinado… ausente da realidade, ausente das reais questões. E sentes-te grande e inteligente. E chegas a idoso e deitas finalmente, num instante de sabedoria, mãos à cabeça e reflectes sobre a irracionalidade da vida que levaste, a falta de lógica. E choras então pois apenas te faltam uns meses ou dias de vida. Mas nessa altura já é tarde para o “criar”. Os sentidos falham, o corpo entorpece, tu cais na cama. Não te erguerás mais. A tua solidão é imensa; sentes que nada valeu a pena porque nada de proveitoso fizeste pelo mundo e iludiste-te em materialismos superficiais. Não quiseste crer em ti. Confiaste na falsa superioridade dos outros, engoliste o seu saber e não deixaste a tua marca.
Pais de crianças pequenas, têm em mãos a capacidade de estímulo aos seres que poderão salvar-nos ou, pior e mais provável, perder-nos e afundar-nos ainda mais. Mexam-se! Para reflexão…

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Passo 7


Entre as quatro paredes do quarto que a circundam, vê-se sozinha e suspira. Sente-se cansada. Não um cansaço físico, não um cansaço específico… mas igualmente um cansaço incapacitante a invade de uma grandiosidade imensa e a faz parar, serenar, apenas respirar. Não se relaciona, desconhece as amizades, o sentir. Não por nunca ter experienciado; não por desconhecimento; não por inaptidão… sim por cansaço, sim por exaustão, sim pela falta de novidade. Não trabalha, apenas escreve. E divaga e dialoga num monólogo consigo, e se aquieta num canto e se mantém tranquila e apática. Sofrida, desconsolada, isolada, desesperançada, virtual. Que foi ela em tempos idos? Igual? O oposto! Dela todos a cercavam pois que emanava vida e alegria. Sorria, amava muito, acariciava a todos imenso, aconselhava, envaidecia, animava. Fazia festas em casa e eram sucessos. Cozinhava para todos, pelas suas mãos, deliciava-os! Amou também, ou melhor, pensou que amou. A realidade não tardou em fazê-la perceber com mais nitidez. Filha querida e exemplar, aluna brilhante, curriculum invejável, inteligente, poderosa, corajosa, eficaz, sapiente! Que mais qualidades a definiam? Voluntariosa, destemida, inalcançável, sonhadora… como ela sonhava!!! Como ela era feliz nos sonhos que criava dentro de si, no seu cérebro! Única! Agora cabisbaixa, descuidada, cansada, sozinha, perdida, esquecida, desanimada, triste, apática… Um dilema para quem a viu e agora vê. Questionam-se o que terá acontecido. Causa preocupação a quem ainda a ama. O mundo deixou de ser um espaço novo e carregado de surpresas por descobrir, mistérios para desvendar, enredos para desenlaçar, lutas por travar. Tudo perdeu o seu encanto, todas as pessoas, todos os seres. Nada mais há a assimilar de positivo… Tudo se resume a réplicas e substituições equipares. Os ideais permanecem, visitam-na em sonhos imensos, mas não abandonam o plano do inalcançável. Sabe que deseja o seu cumprimento mas percebeu também que jamais irá alcançar o seu intento. Quer a justiça, a fraternidade, a honestidade, a amizade entre todos, a cooperação, a entreajuda, o cumprimento de regras, a humildade de carácter, quer o fim do sofrimento, quer a igualdade social, quer a exactidão… quer a perfeição! Descobriu no seu experimentar, no seu palmar, no seu tactear que não vale a pena desejar tanto; nada conseguirá verificar na realidade concreta. E sofre por ela e por todos; pela cegueira que vê neles e pergunta-se, sem conta: “Serei apenas eu a única a ver o caminho correcto? Que foi feito dos amigos que me corromperam sempre?”. Afastou-se deles tão rápido quanto se aproximou; sorrindo ao inicio soluçando no fim. Sofreu e sofre irremediavelmente, incessantemente… é-lhe insuportável! De nada vale chorar, no entanto. Sente que perdeu a capacidade de chorar. Apenas ela e seu ninho, seu nicho, seu espaço curto. Ela e seu pesar mundo.
Identificam-se?

Jogo do Poder


Com seus cabelos revoltos e em ondas singelas, debruça-se sobre aquele tabuleiro oval e gigante que tomara a proporção da Terra, fazendo-a girar ao seu bel-prazer. Depois de limpar com diluente os restos de tinta que sobejaram nos seus dedos após aquela obra ter sido concluída, detém-se agora, observando-a, satisfeito. Era tal e qual como tinha imaginado… tivera mil e duzentos anos a criar aquela que seria a sua obra-prima principal, a que mais Amor dedicaria, aquela que ele saberia ser estrondosamente célebre. Desenhou uma massa de terra envolvida por mares que ocupariam a maior percentagem do seu volume. No pedaço de terra submerso, soube criar os pormenores das árvores, dos planaltos, das montanhas, das rochas e dos vales. O mar saberia a sal e nele desenhou, milimetricamente, peixes diversos e algas marinhas e fungos e anémonas. Faltava-lhe, tão somente e tendo em conta os seus poderes concedidos, dar a esta obra oval eloquente, alguma vida. Concentrando-se, seus braços em torno da sua cabeça, debruçado naquela concentração maior, de repente essa obra ganha vida e se eleva surpreendentemente adiante sua cabeça e faz-se voar para lá longe… dissipando-se até se tornar um mero ponto minúsculo no espaço negro… arquivo das suas obras. Fixando um olhar apaixonado e envaidecido vê pequenos seres, semelhantes a ele, nascendo em ventres de amor e notarem, assustados, o espectáculo diante de si. Vê-os crescer e desenvolverem-se, vê-os caminhando cambaleantes, vê-os soletrando as primeiras palavras, a sorrir, a conquistar um espaço, a serem únicos, esplendorosos, inteligentes, capazes, eficientes. Vê-os a amar, a sentir, a abraçar, a acariciar… vê-os chorar, vê-os desesperados, vê-os matando-se, vê-os enraivecidos, vê-os soturnos. Desenha-os em esboços rudes numas folhas envelhecidas antes de os transpor para sua obra. Antes, detém-se para lhes traçar, um por um, uma rota, um plano, um guião, um objectivo último. Faz variar o grau de dificuldade na conquista, faz variar o carácter provável, faz oscilar a fortaleza, faz variar a beleza, a sensatez. Assim os testa e selecciona… está a pesquisar quais as características óptimas a adoptar para futuros projectos humanos vindouros. Surpreende-se, contudo, quando seres de rotas curtas percorrem circuitos elevados… estranha a perda do seu poder, estranha o porquê da omnipotência deles, quando dela apenas lhe devia pertencer. Enfurece-se e oferece-lhes provas maiores e mais tumultuosas. E, braços cruzados, aguarda, paciente. Alguns resistem, outros caem. Uns suicidam-se, outros lutam. Uns alienam-se, outros desafiam. O artista nunca satisfeito, quer mais e mais provas numa escalada ascendente e exponencial testar aquele que não vão de encontro às suas teorias, às suas hipóteses prévias. E o pequeno grande grãozinho na obra gigante, movimenta-se e contorce-se, chora e blasfema, enrubesce e desfalece, grita e sorri loucura, morre e renasce. E persiste, o teimoso! “Mas que serzinho estranho!”, retorque. O serzinho, dolorido e ensanguentado, ganhou tamanho calo que é capaz de olhar no alto e imaginar o artista… imaginá-lo a tocar nele a movê-lo como peça de xadrez… sente a sua força, sente o olhar que nele se fixa a cada instante mas, ainda assim, tem coragem para o fixar algures e sorrir vitorioso… mais, está capaz de lhe dizer um obrigada de gratidão, tem a magnificência superior e equiparada a ele! O artista repensa o seu lugar, sente-se ainda gigante, sente-se ainda criador, sente-se ainda superior… mas aprendeu, com seres minúsculos como este a relativizar e a valorizar – “Muito bem grande humano pequeno, vem até mim, cumpriste o teu intento e superaste-o… aproxima-te, já acabado, e prossegue comigo na luta pelos que não te seguiram as pegadas. Vem aprendiz heróico!”